A abordagem conceptual da categoria etnia, e as acções práticas dela derivadas, encontram-se, em Angola, profundamente matizadas pelo paradigma colonial. Sabe-se que em Angola os vários grupos étnicos, tal como aconteceu noutras paragens, foram agrupados em função de critérios linguísticos o que, durante o regime colonial, permitiu utilizar tal facto para um maior domínio e exploração dos mesmos.
A questão da etnia, e a sua análise dentro de categorias como o particular e o geral, também tem sido considerada aquando da tentativa epistemológica de compreender alguns factos da nossa história mais recente como a guerra que se seguiu à independência nacional. Autores como John Marcum, René Pélissier e Gerard Ghaliane, na transposição para o terreno da política de categorias histórico-culturais, apegaram-se em categorias como a etnia e a raça, contrapondo-se a Colin Legun, Arthur Klinghofeer e Gerald Bender para os quais todos estes problemas de carácter político e ideológico foram derivados do condicionamento histórico internacional. Qualquer ponto de vista, seja para defender uma acção unipolar, seja para defender a acção bipolar, conflui sempre numa única ideia: a concepção de etnia e da raça, herdada da cosmovisão colonial, não permitiu dar, até ao momento, respostas às questões que se levantam em torno da Nação para a adopção de estratégias que vão ao encontro dos interesses, necessidades e expectativas dos angolanos.
Tal como se disse acima, as categorias como etnia e raça foram utilizadas pela administração colonial da forma mais subtil para a manutenção do poder neste território. Por um lado, as autoridades coloniais direccionaram as suas acções em relação aos grupos étnicos mais representativos, no sentido de agudizarem e amplificarem as querelas já existentes entre os mesmos. Por outro lado, foram privilegiando um e outro grupo no sentido de o apresentarem como uma “casta” superior dentro do complexo e contraditório mosaico etnolinguístico angolano. Foi neste sentido que enquanto a administração colonial se pugnava por acções de assimilação do grupo étnico Ambundu, que foi praticamente o centro de assimilação ao ponto de os ambaquistas (de ambaca, dialecto Kimbundu usado nas regiões entre o rio Cuanza e Dande) se (auto) denominaram por “mudele”, ia tratando outros grupos de maneira diferente.
Nos anos que se seguiram ao deflagrar da luta de libertação nacional, muito destes “mundelizados” eram vistos nas vilas e nas cidades do interior do país vestidos na capa de funcionários públicos da administração colonial que, em acções paralelas mas perfeitamente concertadas, foi, por um lado, convertendo certos grupos, como os Ovimbundu, em mão-de-obra barata, (utilizados maioritariamente na limpeza da cidade capital, nas roças de café, nas plantações de algodão e pescarias) e, por outro lado, marginalizando outros grupos. Note-se que numa altura em que os Bakongo e os Lunda-Tchokue procuravam refúgio nos países limítrofes, outros grupos como os Herero (Kuvale) sofriam as piores campanhas para a sua extinção. Daí que os efeitos do Estatuto dos Indígenas Portugueses das Províncias da Guiné, Angola e Moçambique, aprovado por Decreto-lei de 20 de Maio de 1954, que consignava as modalidades segundo as quais qualquer «indígena» das colónias portuguesas podia ser «elevado» à condição de «assimilado»m se tenham feito mais sentir nas populações da zona costeira, com destaque de Luanda. Nas palavras de Adriano Moreira, a ideia de assimilação implicava a “adopção por parte do africano da lei comum e da conduta nos moldes do povo colonizador”. Em teoria, qualquer indivíduo que soubesse ler e escrever em português, e demonstrasse possuir actividade laboral remunerada, poderia aceder a essa condição. É claro que se isso era mais fácil para os angolanos que habitavam nas cidades e extremamente difícil para os que viviam no campo. Quanto ao Centro e Sul de Angola, reconhece-se que se não fosse a intervenção das Missões Protestantes, sob a égide dos missionários americanos, canadianos e suíços, o fosso entre os grupos étnicos do interior e os da zona costeira seria ainda maior. Daí que tenha prevalecido no imaginário angolano – que ainda hoje continua embora com menos força – a ideia de os quimbundos estarem mais ligados às funções administrativas nas cidades e aos modismos, enquanto os umbundos estariam mais arraigados ao trabalho do campo com fortes nuances de carácter tribal. A modernidade ou, se quisermos, a urbanidade, estaria mais próxima dos quimbundos na mesma proporção em que os ovimbundos e outros grupos étnicos continuavam agarrados e amarrados aos seus laços tribais.
Os portugueses, diferentemente de outro tipo de colonização, iriam introduzir mais um elemento para baralhar jogo: o mestiço. Foi, de facto, este elemento que, juntamente com as elite africanas assimiladas viria, pela primeira vez, a pôr na ordem do dia, em Angola, a problemática da crioulidade, de igual modo elemento chave na política colonial cujo mote foi, como se sabe, “dividir para melhor reinar”. Logicamente que estes aspectos todos vieram a ter repercussões na génese dos movimentos de libertação e nos processos que mais tarde se lhe seguiram. Não espanta, por isso que o Mpla, um partido nascido em Luanda, tenha tido a sua base de apoio nos negros assimilados, mestiços, brancos e a população originária do grupo étnico Ambundu. A Fnla, por sua vez, teve apoio de elementos maioritariamente Bakongo e a Unita, os Lunda-Chokwe e os Ovimbundu.
Logo após a ascensão de Angola à independência, muito longe de serem dirimidas as contradições derivadas dos problemas étnicos, estes vieram a acirraram-se, e memo hoje ainda estão longe de serem resolvidos. Uma das razões para isso é o facto de, desde a ascendência do país à independência ao momento actual, ter prevalecido única e exclusivamente o projecto de sociedade delineado pelo Mpla. Este projecto peca por defeito por implicar o fim necessário das etnias e por revelar, da parte dos seus ideólogos, um certo receio, desconhecimento e desprezo dos valores culturais africanos. Pode citar-se, como exemplo, o posicionamento dúbio e hesitante do Mpla para com as línguas africanas (nacionais) e o projecto absurdo do Presidente Agostinho Neto, declarado aquando da fundação da União dos Escritores Angolanos, em Dezembro de 75 (um mês depois da independência), no qual dizia que, a médio prazo, era necessário substituir a Língua Portuguesa por uma nova língua feita “da amálgama dos dialectos angolanos”. Isso numa altura em que a comunidade cientifica já havia reconhecido o fracasso do Esperanto, para o caso da Europa, e Afrihili no Gana, e já se faziam ouvir vozes no sentido de as línguas africanas (nacionais) angolanas serem o lado mais visível e inequívoco da identidade cultural deste povo.
Torna-se assim premente pensar numa nova abordagem das etnias em Angola, despindo-a de um carácter redutor ou extremista, porquanto se sabe que a etnia, muito longe de ser vista como algo pernicioso para a sociedade angolana, faz parte da sua vitalidade e, como tal, deve ser preservada e inserida no projecto de sociedade que se pretende construir. Por outras palavras, o problema étnico angolano é incontornável na construção da nação angolana.
A História e a Antropologia angolanas dizem-nos que a diferença fundamental entre os noves grupos étnicos mais representativos angolanos é de ordem linguística. Daí que se torna relevante olharmos para Angola como uma sociedade multicultural onde existe uma maioria, ou grupo maioritário, e as minorias. O grupo maioritário é constituído pela comunidade angolana de origem Bantu que coexiste com as minorias não-bantu (de origem africana e europeia).
Pensando em conformidade com o multiculturalismo, Angola, longe de ser vista como um país fragmentado por cerca de uma dezena de grupos étnicos e centenas de subgrupos, deveria ser encarada como uma sociedade multicultural e multiétnica com duas culturas: a cultura bantu e a cultura não-bantu. Consequentemente, a grande tarefa do Estado Angolano seria a de determinar e concretizar os aspectos gerais e representativos da cultura Bantu a introduzir no projecto de sociedade que visa a construção da nação angolana.
Não agindo assim, estar-se-á a manter vigente o status quo colonial que, em termos culturais, levou a que os angolanos continuassem ( e ainda continuam) a questionar-se da sua angolanidade, numa altura em que é dado adquirido que as maiorias (sociedade maioritária) são o pilar de qualquer sociedade, cabendo-lhes a honrosa tarefa de integrarem as minorias étnicas, sociais, culturais e religiosas.
Bibliografia
MOREIRA A. (1961) Politica ultramarina. Lisboa. Junta de Investigações do Ultramar.
BITTENCOURT, M (2001) A história contemporânea de Angola: seus achados e suas armadilhas. Luanda CMCDP.
NETO, A. (1976) Discursos. União dos Escritores Angolanos.
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