Ernesto Lara Filho

lara filho

Ernesto Pires Barreto Lara Filho nasceu em Benguela em 1932 e faleceu no Huambo em 1977 num acidente de aviação. Fez os seus estudos (primários e secundários) na cidade de Benguela, tendo-se formado, mais tarde, na Escola Nacional de Agricultura de Coimbra, no curso de Regente Agrícola, em 1952. A nível político, foi membro do Partido FUA (Frente Unidade de Angola), tendo, devido a isso, sido preso pela PIDE. Foi jornalista, poeta e cronista, tendo contribuído com produções suas para vários jornais e revistas e, juntamente, com Inácio Rebelo de Andrade, dirigido a “ Colecção Bailundo”onde se publicaram três livros de poesia.

Foi co-fundador, em 1975, da União dos Escritores Angolanos, em Luanda. É considerado por certos críticos como “’Escritor maldito’, pela sua postura de boémio e  por contradizer o status quo e o bom gosto da “elite intelectual", da época (e não só). Mesmo depois da independência nacional Ernesto Lara Filho nunca abandonou o seu espírito inconformista, individualista, humorista e a obsessiva apologia à marginalidade que constituem imagens de marca da sua poesia e dos seus ensaios. Figura em diversas antologias, nomeadamente, Antologia de Poesia Angolana (1957), Poetas Angolanos (1959), Poetas Angolanos (1962), O Corpo da Pátria – Antologia Poética da Guerra do Ultramar, 1961-1971 (1971), Presença de Idealeda (1973), Angolana 81974), Poesia Angolana de Revolta (1975), Antologia da Poesia Pré-Angolana (1976), No Reino de Caliban. Antologia Panorâmica da Poesia Africana de Expressão Portuguesa (1976), Poesia de Angola (1976).  As suas obras publicadas são: Picada de Marimbondo (1961), O Canto do Martrindinde e Outros Poemas Feitos no Puto (1964), Seripipi na Gaiola (1970), O Canto do Martrindinde (1974, 1989), Crónicas da Roda Gigante (1990).

 

             

picada

 

 

Poema de Ernesto Lara Filho

 

Infância perdida

               (para o Miau)

 

Nesse tempo, Edelfride,

Com quatro macutas

A gente comprava

Dois pacotes de ginguba

Na loja do Guimarães.

                    Nesse tempo, Edelfride,

                    com meio angolar

                    a gente comprava

cinco mangas madurinhas                                                                                             

                    no Mercado de Benguela.

Nesse tempo, Edelfride,

montados em bicicletas

a gente fugia da cidade

e ia prás pescarias

ver as traineiras chegar

ou então

à horta do Lima Gordo

no Cavaco

comer amoras fresquinhas.

                    Nesse tempo, Miau,

                    (alcunha que mantiveste no futebol)

                    nós fazíamos gazeta

                    da escola coribeca

                    e íamos os quatro

                    jogar sueca

                    debaixo da mandioqueira.

Era no tempo

em que o Saraiva Cambuta batia na mulher

e a gente gostava de ver a negra levar porrada.

                    Era no tempo

                    dos dongos da ponte

                    dos barcos de bimba

dos carrinhos de papelão

 

                   

Como tudo era bonito nesse tempo, Miau!

 

Era no tempo do visgo

que a gente punha na figueira brava

para apanhar bicos-de-lacre e seripipis

os passarinhos que bicavam as papaias do Ferreira Pires

que tinha aquele quintalão grande e gostava dos meninos.

 

                    Era no tempo dos doces de ginguba com açúcar.

 

Mais tarde

vieram os passeios nocturnos

à Massangarala

e ao Bairro Benfica.

E o Bairro Benfica ao luar

O poeta Aires a cantar

(meu amor da rua onze e seu colar de missangas...)

Tudo era bonito nesse tempo

até o Salão Azul dos Cubanos

e o Lanterna Vermelha - o dancing do Quioche.

 

                    Foi então que a vida me levou para longe de ti:

                    parti para estudar na Europa

                    mas nunca mais lhe esqueci, Edelfride,

                    meu companheiro mulato dos bancos de escola

                    porque tu me ensinaste a fazer bola de meia

                    cheia de chipipa da mafumeira.

                    Tu me ensinaste a compreender e a amar

                    os negros velhos do bairro Benfica

                    e as negras prostitutas da Massangarala

                    (lembras-te da Esperança? Oh, como era bonita

                                                                                                      [essa mulata...)

                    Tu me ensinaste onde havia a melhor quissângua

                    de Benguela:

                    era no Bairro por detrás do Caminho de Ferro

                    quando a gente vai na Escola da Liga.

                    Tu me ensinaste tudo quanto relembro agora

                    Infância Perdida

                    sonhos dos tempos de menino.

 

Tudo isso te devo

companheiro dos bancos de escola

isso

e o aprender a subir

aos tamarineiros

a caçar bituítes com fisga

aprender a cantar num kombaritòkué

o varre das cinzas

do velho Camalundo.

Tudo isso perpassa

me enche de sofrimento.

 

                    Diz a tua Mãe

                    que o menino branco

                    um dia há-de voltar

                    cheio de pobreza e de saudade

                    cheio de sofrimento

                    quase destruído pela Europa.

Ele há-de voltar

para se sentar à tua mesa

e voltar a comer contigo e com teus irmãos

e meus irmãos

aquela moambada de domingo

com quiabos e gengibre

aquela moambada que nunca mais esqueci

nos longos domingos tristes e invernais da Europa

ou então

aquele calulu

de dona Ema.

 

                    Diz a tua Mãe, Edelfride,

                    que ela ainda me há-de beijar como fazia

                    quando eu era menino

                    branco

                    bem tratado

                    quando fugia da casa de meus Pais

                    para ir repartir a minha riqueza

                    com a vossa pobreza.

                    Diz tudo isso a toda a gente                                                    

                    que ainda se lembra de mim.

                    Diz-lhes. Diz-lhes

                    grita-lhes

                    aos ouvidos

                    ao vento que passa

                    e sopra nas casuarinas da Praia Morena.

                    Diz aos mulatos e brancos e negros

                    que foram nossos companheiros de escola

                    que te escrevo este poema

                    chorando de saudade

                    as veias latejando

                    o coração batendo

                    de Esperança, de Esperança

                    porque ela

                    a Esperança

                    (como dizia aquele nosso poeta

                    que anda perdido nos longes da Europa)

                    está na Esperança, Amigo.

 

Edelfride, você não chore

saudades do Castimbala

nem lhe escreva

cartas como essa

que são de partir

meu pobre coração.

 

                    Nesse tempo, Edelfride,

                    Infância Perdida

                    era no tempo dos tamarineiros em flor...

 

                                         (Antologia de poesia da Casa dos

                                         Estudantes do Império - Angola e

                                         S. Tomé e Príncipe)

 

                                                                                                             

roda gigante

Fiquei muito contente por existir uma área neste site onde os escritores, e talvez mais tarde outras pessoas ilustres nas diversas áreas da cultura e ciência, da nossa terra sejam lembrados a história necessita destes contributos para que seja a mais verdadeira possível e possa ser transmitida ás gerações seguinte.

Ernesto Lara Filho tinha também um coração grande no meio de virtudes e fraquezas e marcou a sua geração …por muitos era conhecido como o "Tau Tau". Apesar de um percurso de vida sinuoso nunca o vi aceitar o colonialismo ou duvidar da existência da Nação Angolana como seu objectivo máximo.

Não morreu num acidente de aviação mas devido a um acidente de viação que lhe roubou o que restava de uma saúde precária.

Se gosta de crónica leia por favor o "Meu Mosaico para Brasilia" e aí confirmará a qualidade de um cronista angolano que antes de tudo era um homem da Cultura da Lingua Portuguesa. Um Humanista. Se gosta de crónica não dará o tempo como perdido leia Ernesto Lara Filho.

SAUDADES DO BAIRRO BENFICA, S: JOAO DO CASSOCO, SAUDADES DA INFANCIA DE ANGOLA, DAS HISTÓRIAS OUVIDAS SOBRE O TIO AVÔ ERNESTO LARA FILHO

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