A guerra dos Seles: Depoimento de um sobrevivente.

Aurelio

O ano de 1917 foi, para todos os efeitos, trágico para Angola. Foi nesse ano em que muitas das etnias irmãs tiveram os mais duros reveses: a título de exemplo pode citar-se um dos subgrupos dos Ovambo, os Cuanhama, cujo grande chefe, Mandume, se suicidou ao prever a derrota eminente, embora também se diga que foi derrotado pelos portugueses e, posteriormente, decapitado, sendo a cabeça exibida pelos colonialistas durante muitos anos. Relativamente ao espaço étnico Ovimbundu verificou-se nesse ano o que se denomina na história por Revolta dos Seles, cujas causas, segundo Almeida (1979), foram o roubo de terras e o trabalho forçado.Trouxemos aqui o depoimento de um sobrevivente dessa guerra a fim de termos uma percepção mais clara sobre tal acontecimento.

Entrevista conduzida e traduzida por Mbela Issó

Mbela Issó - Podia dizer-nos o seu nome?

Aurélio Ukuahamba - Eu chamo-me Aurélio Ukuahamba.

MI - Quantos anos tem?

AU - Não sei bem; mas em 1917, eu tinha 14 anos; portanto, devo ter agora 99 anos.

MI - Diga-nos o que lhes fez deixar o Seles e passar a viver no Bailundo?

AU - Não me lembro bem da minha aldeia. Recordo-me, isso sim, de que na aldeia se haviam destacado três homens: Manda, o seu irmão Chinguli e o primo deste Yove. Eles tinham morto um branco chamado Chimboto (este não era o nome real) chamavam-lhe assim por se assemelhar a um sapo, ou seja, era muito gordo. A morte de Chimboto fez com que o problema chegasse ao Bailundo, de onde nasceu a tal guerra. No entanto, essa guerra não foi dirigida contra toda a região dos Seles, não. Ela foi dirigida ao local onde viviam Manda, Chinguli e Yove. Eles haviam, inclusivamente, trazido um mapa onde estava assinalado o tal local. Consequentemente, a guerra não chegou a outra margem do rio. Apenas no local onde se supunha estarem os três homens. A guerra terminou numa caverna, de onde saí e fui levado para o Bailundo, depois de termos passado por Chipala.

MI - Na verdade quem era esse tal Chimboto?

AU - Chimboto era um branco.

MI - Mas que foi que ele fez?

AU - O que ele fez não sei; agora o que lhe fizeram eu sei; dizem que foi comido; foi “mastigado”. Agora as causas que fizeram com que ele fosse comido eu, confesso sinceramente, desconheço-as. Na altura não passávamos de uns simples garotos. É importante referir que em Katanda nada aconteceu porque vivia lá um branco chamado senhor Barradas que saiu em defesa das populações de Katanda, explicando que elas não tinha nada a ver com o problema. Esse senhor Barradas disse a eles que as pessoas daquela zona nada tinham com o problema, então ergueu-se uma bandeira na aldeia de Katanda.
MI - Katanda?...

AU - Sim, sim, Katanda Seles.

MI - Mas que é isso de Katanda? É uma aldeia?

AU - Sim, é uma aldeia muito grande, onde vivia o tal senhor Barradas, que vivia próximo da aldeia e saiu em defesa da população que ali vivia.

MI - Portanto, todos os que viviam na aldeia de Katanda-Seles foram poupados?

AU - Sim, foram poupados. Os das outras aldeias eram apanhados e mortos logo de imediato. Foram esses acontecimento que lá se viveram.

MI - Mas matavam apenas homens ou também velhos, mulheres e crianças?

AU - Tudo era morto, inclusivamente as crianças. Havia casos em que as mulheres eram obrigadas a transportar grandes cargas e eles, ao verem que elas não conseguiam caminhar, diziam que isso era devido ao peso da criança, então pegavam nelas e atiravam-nas ao chão, matando-as: Isso tudo eu vi com os meus próprios olhos.

MI - Mas quem eram essas pessoas que tinham ido ao Seles fazer isso; eram angolanos, portugueses, brancos. Quem eram? Pode dizer-nos?

AU - Refere-se aos que tinham participado nessa guerra? Foram as autoridades coloniais. Foram os brancos. O senhor Gomes Luís, Martinho e o padre Gregoire Le Guennec eram esses que se encontravam à frente de todo este processo.

MI - Le Guennec?

AU - Sim; Le Guennec, um padre francês.

MI - Um francês metido nisso?

AU - Sim; um francês. Este padre destacou-se ao ponto de os meus pais terem dado o nome dele a um dos filhos, o Evaristo Le Guennec. É este o nome do meu irmão.Foi um padre muito misericordioso, que muito ajudou a minha mãe que padecia de ochivovo e mal conseguia andar, pois tinha as pernas inchadas. Ele andava de burro. Foi ele quem tratou da minha mãe até que ela deu à luz e então atribui o nome do padre ao filho. É por isso que o meu irmão se chama Evaristo Le Guennec.

MI - Na altura o rei do Bailundo era o Kandimba. Será que ele participou directamente nesta guerra? Ele tinha ido pessoalmente aos Seles?

AU - Sim, ele participou directamente na guerra. Para além dele também esteve lá o Sekulu Yacomba (Jacob). Havia, na missão do Bailundo, um missionário chamado Hasting que também estava para ir, mas depois desistiu alegando que aquele problema não tinha nada a ver com eles, mas sim com os portugueses. O missionário Hastings também queria ir à guerra porque era muito corpulento, mas como era um homem de paz, não o fez, orientando, no entanto, que fosse o tal gigante Sekulu Yacomba. Um homem. Era muito corpulento. Um homem entre os homens. Ele é o pai do Sr. André Luvemba. Da Missão Evangélica do Bailundo tinham saído muitas pessoas para lá, como por exemplo, o Salustiano Epalanga, o Marcolino Sayongo, o Lutero e outros. Todos eles tinham seguido o Sekulu Yacomba. Como eram pessoas fortes foram aos Seles por causa de Manda, Chinguli e Yove. Foram esses três os causadores da tal guerra. Mais tarde eles foram apanhados e não se sabe bem para onde foram levados; se foi para Portugal ou para um outro local, nunca o soubemos. Vimos apenas quando foram apanhados e amarrados com correntes.
MI - Correntes?

AU - Sim, correntes. Eu vi-os com esses meus próprios olhos. Eu vi como eles foram conduzidos para o rio Queve e metidos à força num barco. Eu estive lá. Vi tudo isso com os meus próprios olhos. Era como se os estivesse a ver mesmo agora.Mande era um negro claro, enquanto que Chinguli e o Yove eram muito escuros.

MI - Houve pessoas como vocês que foram capturadas. Será que foram convertidas em escravos?

AU - Não éramos bem escravos. Talvez houvesse essa intenção no princípio, mas o governo português ordenou que as pessoas capturadas, na guerra dos Seles, não fossem consideradas de escravas, uma vez que não haviam sido compradas. Agora é bom enfatizar que quem ordenou que se fizesse a guerra contra os Seles, foi o governo colonial português. É assim que se explica que depois de terminada a guerra, as autoridades portuguesas disseram que quem quisesse voltar aos Seles, poderia fazê-lo de livre vontade. Inclusivamente, o rei de Katanda (dos Seles) se tinha deslocado pessoalmente ao Bailundo, armou o seu acampamento no Sachole, reuniu todas as pessoas que tinham sido levadas ao Bailundo como prisioneiras e disse que todos os que quisessem voltar, poderiam fazê-lo. Era uma grande multidão. Muita gente mesmo.
MI - Esse rei Katanda era o rei só de Katanda ou dos Seles inteiro?

AU - Era o soba grande dos Seles. Como na aldeia dele, como disse atrás, ninguém fora molestado, isso criou mais confiança às pessoas que quando souberam da presença dele, foram apresentar-se.

MI - Terminada a guerra não nasceu ressentimentos entre os Bailundos e os Seles?

AU - Bem, os Bailundos foram mobilizados pelas autoridades coloniais por terem homens muito corpulentos. Os portugueses pediram ajuda a estes para combater os (ingumba) bandidos que haviam morto um branco. As autoridades coloniais não enviaram para lá os soldados no activo, mas aqueles que estavam de “baixa”, ou seja, soldados que já tinham acabado a tropa e, como tal, sabiam disparar. Foi a estes a quem deram as armas, sob o comando do branco Sr. Gomes, o branco Martinho e o Sr. Padre Le Guennec, que fazia a missa e o sekulu Yacomba de Chilume. Foram eles que fizeram o tal trabalho. A nossa mãe recusara-se a voltar aos Seles, dizendo que os filhos deviam estudar na escola. E assim ficámos no Bailundo onde estudei um bocadinho. Depois disso trabalhei com os missionários. Os bailundos tinham para comigo uma grande estima. Nunca fui maltratado ou humilhado.

MI - E nunca se arrependeu por ter ficado no Bailundo e não ter regressado à sua aldeia, nos Seles?

AU -Como me iria arrepender? Eu cresci lá.

MI - Então acha-se mais Bailundo que Seles?

AU - Sim, considero-me Bailundo. Foi lá onde me casei. Anos mais tarde, desloquei-me uma vez aos Seles para visitar o Soba Ndundu, que me disse que ia falar com o chefe de posto colonial, para me disponibilizar um carro com o qual iria buscar a minha esposa, bagagem, filhos etc. para lhe suceder ao trono.

MI - Soba quê?

AU - Soba Ndungu.

MI - Dos Seles?

AU - Sim, dos Seles.

MI - E não aceitou?

AU - Não aceitei, inclusivamente tive de lá ir três vezes. Os meus irmãos também tinham ido comigo. De resto, vivi todos esses anos na Missão do Bailundo, sou um crente, tentei sempre, embora com muita dificuldade, cumprir com os mandamentos da igreja. Fui baptizado em 1930 e até agora tudo tem corrido muito bem.Agora teria um certo interesse saber como eles se comunicavam, na altura.Os soldados tinham uma corneta, enquanto que o soba usava tambores. Havia um indivíduo que subia a uma árvore de onde ia dando, aos gritos, as orientações. Vocês têm de fazer isso; ou têm de fazer aquilo. Ia de novo, para uma outra área, repetindo as mesmas ordens, dando anúncios. Ia para aldeias distantes o que o obrigava a passar a noite pelo caminho, chegando mesmo ao Huambo e ao Mungo; e quando andavam em grupo, com homens armados, apoderavam-se do gado bovino e das pessoas que encontravam e traziam para o Bailundo. As coisas decorreram assim até que chegámos ao Bailundo. Isso tudo aconteceu em Março de 1918.

MI - Só mais questão. No princípio falou de uma caverna (eleva). Tem algumas recordações dessa caverna?

AU - Ah, era uma grande caverna.

MI -Não tinha nome? Como se chamava?

AU - Chiyumba; foi ali onde nos tínhamos escondido quando os brancos, apoiados pelos bailundos, atacaram a nossa aldeia. Nós fomos os últimos a chegar e quando lá pusemos os pés encontramo-la completamente cheia, abarrotada, e não tivemos outra alternativa senão sentarmos à entrada da mesma. Foi ali onde eles nos encontraram. O meu pai foi afastado da entrada e as pessoas foram obrigadas a sair da caverna. Assim que saíam os homens eram alinhados dum lado e, de seguida, todos mortos à beira de um precipício; os homens foram todos fuzilados. O meu pai também estava para ter o mesmo fim, mas o sekulu Yacomba não aceitou e disse que o ia levar para o Bailundo. Na guerra dos Seles, os Bailundos tiveram duas baixas: a do sekulu Chilyambelela, Sekulu da Eunice Chavonga, que nasceu o Amós Hokohoko. E outro que morreu foi o Chipuketa. São todos de Capila e perderam as suas vidas nos Seles. Eu estava junto do Sekulu Chyambelele. A frente dele, vinha o homem da bandeira, depois estava ele e atrás dele, eu. Aconteceu que na caverna estava alguém com uma arma que disparou contra o sekulu Chilyambelea, o qual caiu morto com um tiro na cabeça. O contingente de tropas do governo colonial e os Bailundos ficaram ali três dias, à caça das pessoas e fuzilando-as assim que as apanhavam. Isso tudo foi visto com os meus próprios olhos.

MI - E que nos tem a dizer sobre o comandante desta missão? Era um oficial, comerciante?

AU - Não era general e muito menos comerciante. Chamavam-lhe Senhor Gomes, era um juiz.

MI - Ah, então era um juiz. E onde ele vivia?

AU - Ele viveu no Bailundo, junto da estrada que dá para Cajabão, muito próximo da casa do senhor Moreira. Foi ele, juntamente com o Senhor Martinho, que organizou todas as forças. Acho que ele era comandante. Agora o padre Le Gennec, não era propriamente um militar, apenas se limitava a dar a missa, de manhã e a tarde.

MI - Mas quanto tempo demorou então a guerra?

AU - Oito meses. Começou em Agosto de 1917 e terminou em Março de 1918.

MI - Foram grandes combates.

AU - Sim, grandes combates. Pegavam nas pessoas e disparavam, disparavam sobre elas.. No princípio, matavam as pessoas ao lado do rio. Depois chegou uma ordem para que as pessoas deixassem de ser mortas na margem dos rios e que era necessário matá-las ao lado de covas abertas para o efeito. Teve de se pedir o envio de enxadas do Bailundo. As pessoas que iam ser mortas é que cavavam as suas próprias covas, isso tanto podia ser feito no período da manhã como da tarde e mais tarde eram fuziladas e fechavam-se os buracos. Isso tudo eu vi com os meus próprios olhos.

MI - Mas uma coisa: Esse Mande, Chinguli e Yove, não tinham armas?

AU - Não, eles não tinham armas. Estavam desarmados, nem sequer tinham arcos e flechas. É por isso que eu acho que aquela guerra não foi justa, pois uns tinham armas e os outros nada tinham e a única coisa que tinham de fazer era apenas fugir. Bem, mas isso não quer dizer que entre os Seles não havia pessoas com armas, pois o Chipuleta, tal como disse, foi morto com uma arma de fogo. Esse Chipuleta tinha acendido um tição à entrada da caverna sem saber que dentro dela estava alguém com uma arma que disparou e foi o fim. Você conhece o Sekulu Mbalundu que vivia no Sachole?

MI - Não; não o conheci, mas ele também tinha ido aos Seles?

AU - Sim; também tinha ido. Esse tal Sekulu Mbalundu é que tratou da saúde do homem que matou Chipuleta. Ele foi apanhado e foi morto aos poucos. Primeiro cortaram-lhe as mãos, depois as pernas, e, finalmente, a cabeça. Foi um sofrimento terrível. Foi essa a guerra dos Seles que eu vi com os meus próprios olhos.

Muito obrigado pelos seus depoimentos.

Etiquetas

Também pode comentar desde o Facebook