Nascido já depois dos 70s, aliás muito depois, livrei-me de viver as mesmas situações que os meus pais e avós. O que é natural. Porém, tenho a oportunidade de vivenciar factos que só eu posso fazer, graças às inúmeras circunstâncias criadas pelo tempo, pela sociedade e, naturalmente, por mim. Tenho uma história de vida parecida a de muitos outros que se calhar só difere por questões geográficas. O meu avô paterno é filho de um branco português e de uma negra ovimbundu. Certamente criada da casa ou algo pior. Ele nem chegou a conhecê-la. O facto é que apesar de ter crescido como filho bastardo, numa família em que ele era claramente o mais escuro, o meu avô preservou características sócio-culturais e étnicas da sua mãe. O resto da história não interessa muito neste momento. Mas tal identificação, ou simplesmente a falta de uma mãe (negra) durante o seu desenvolvimento como homem, levou-o a casar-se com uma negra ovimbundu. Se há alguma semelhança entre a história do avô e a do seu pai, esta encontra-se apenas na procriação com uma mulher ovimbundu. ','
A partir deste momento a história começa a dar um giro, pelo menos para mim interessante. Homem que fala e escreve umbundu, o meu avô, é um dos cultos ovimbundus que esteve perdido no seu tempo e que se lhe perguntarmos o que tem de português certamente responderá: o B.I.
O meu pai já nasceu noutra época. Época em que por todo o mundo se ouvia falar do novo negro, "New Negro", da Negritude, Negritude africana e, naturalmente, dos primeiros movimentos políticos da zona. Época em que começavam as primeiras guerras contra o regime colonial português; época que dava sequência à proibição de vários tipos de manifestações culturais; época em que a língua já foi sendo apagada por borrachas descriminadoras e insensíveis.
Sendo um homem feito, há muitos anos na Europa e casado com uma mulher europeia, às vezes debato-me e debatem-me com questões interessantes. Não são poucas as vezes em que envolvido numa actividade social qualquer, me perguntam de onde sou. Com todo o orgulho e autoridade, respondo que de Angola. Mas as pessoas querem saber mais e perguntam pela minha etnia. Imediatamente, começam os problemas de identidade! Tal acontece exactamente porque a cara de uma cultura muitas vezes é a sua língua. E se um indivíduo quase não arranha tal idioma, a reacção das pessoas é, de certo modo, de admiração e estranheza. "Sou Ovimbundu", respondo ainda mais orgulhoso. No momento em que me pedem algumas palavras, vou dizendo algumas frases resultado dos esforços feitos em casa pelo meu pai para nos ensinar a língua de uma cultura e etnia cheia de mistérios.
Esta retrospectiva leva-me à importância da busca de identidade. Tal busca se pode fazer de uma maneira integral de modo que seja possível criar mentes, corpos e almas equilibrados.Não são poucos os emails que recebo, em que as questões "estarão os jovens angolanos interessados na sua cultura?" ou "interessados em algum tipo de cultura?" são colocadas. Tais correios electrónicos começam e acabam fazendo um julgamento desmedido da conduta dos jovens angolanos. Referindo-se que os jovens estão mais preocupados e ocupados em sexo, desbunda, bebidas, festas de kuduru, concursos de misses, etc. E acabam dizendo que há que mudar de mentalidade. Ok. Há que mudar de mentalidade! No meu ponto de vista isto é muito interessante. A questão é que vivemos num mundo extremamente globalizado e se passarmos apenas um olhar pelos grandes centros urbanos internacionais a imagem que veremos não vai diferir em nada dos comportamentos dos meus conterrâneos e contemporâneos. Nem sempre é o mais correcto apontar para o problema e descançar criticando. É preciso conhecer a causa para que se possa apresentar uma cura. Não podemos analisar o presente sem olhar para o passado, sem olhar para a história. Não podemos falar dos netos de hoje, sem, por exemplo, pensar no meu Avó.
Em graus e realidades diferentes, todos os jovens angolanos passamos por uma crise. Um tipo de cultura exterior, atractiva e expressa nos leva a enveredar por ela. Muitos anos em que a aculturação portuguesa passou de grátis a obrigatória em dois segundos, não ajudam na formação de um homem ou mulher legitimamente angolanos. A estes anos acrescente-se a influência dos novos países também criados por colonos portugueses e não só, e com valores ligeiramente diferentes dos tradicionais. Misturando factores sociopolíticos e económico-sociais a juventude perde o rumo naturalmente. É importante lembrar também que a juventude angolana de alguma forma viveu em clima de guerra. São muitos anos em que não foi possível possuir bens próprios ou pelo menos alguma responsabilidade sobre o próprio eu. E não é possível mudar a história em quatro ou cinco anos. Outro facto é que, no tal clima de guerra, a sociedade carecia de personalidades padrão a quem imitar. Se está provado que o homem funciona por imitação, não é dificil advinhar que poucos jovens angolanos queiram ou alguma vez quiseram ser "palhaços" de profissão. Por exemplo. Ser palhaço não dá poder. Teoricamente.
Num tempo em que Lewis Hamilton é o primeiro negro a ganhar o compeonato do Mundo de Fórmula 1, sendo também o primeiro a participar; tempo em que Barack Obama se torna Presidente dos Estados Unidos da America, lembro-me novamente do meu avó, do meu pai, das lutas que eles tiveram que travar e deparo-me subitamente com a voz da esperança. Os tempos estão a mudar! É verdade. Não basta apenas falar em mudar as mentalidades, é preciso, isso sim, trabalhar nas mentalidades. E tal é impossivel sem saber de onde vimos. É preciso criar um novo grupo de jovens angolanos que, como um vírus, possam contagiar os demais. É preciso buscar as origens étnicas e culturais. Não quero com isso dizer que se deve criar seres independentes de Angola, mas homens e mulheres capazes de entender que Angola é um estado multi-cultural e multi-étnico; que a sua etnia é a xx, a sua língua a yy, e, deste modo, compreender comportamentos sociais que só se pautam sabendo de onde se vem.
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