A Complexa Relação entre a Cultura e a Educação

Usos, Acepções e Definições de Cultura

O conceito de cultura tem sido definido de várias maneiras, continuando, até hoje, a ser objecto de várias controvérsias. Uma das razões é o facto de o mesmo estar associado a atitudes etnocêntricas, discriminatórias e outras. Vamos, de seguida, analisar algumas concepções  sobre este conceito, assim como o seu uso. O conceito de cultura remonta ao século XVIII, na Alemanha. Na altura, o mesmo foi abordado num domínio muito específico que é o da História Universal. Esteve ligado, inicialmente, ao Método Histórico e serviu para descrever a evolução progressiva dos conhecimentos e de especializações numa determinada área (Abdelmalek, 2000). A cultura foi, assim, entendida como o conjunto de capacidades e saberes em posse de um determinado grupo social, elite ou sociedade, incluindo aspectos literários, artísticos, matemáticos e filosóficos. Williams, citado por Fisher (1997), na sua categorização, designa esta concepção por humanista ou estética por considerar as sociedades que produzem excelentes obras de arte como as mais cultas. É usual ouvirmos esta concepção no dia-a-dia, sobretudo quando se afirma que um grupo é mais culto que o outro.

A segunda é concepção antropológica de cultura que se refere ao estilo vida especifico de um determinado grupo de pessoas, englobando elementos como os valores, costumes, normas, estilos de vida, organização social e outras. Esta concepção é também utilizada no nosso quotidiano (senso comum) quando, por exemplo, nos referimos à cultura Tchokwe, à cultura angolana. Millan (2000) diz-nos que a concepção antropológica de cultura é a que nos permite falar, por exemplo, de várias culturas num mesmo contexto (cultura dos operários).

Outra concepção de cultura que nos aparece na subdivisão de Williams  é a sociológica e que diz respeito ao processo de desenvolvimento intelectual, espiritual e estético. Este conceito pretende, assim, caracterizar aspectos referentes ao desenvolvimento cultural de um povo visto em termos da ciência e da tecnologia. Quando se diz, por exemplo, que o ocidente é, tecnologicamente mais desenvolvido que o terceiro mundo, está-se, tacitamente, a falar do lado sociológico da cultura. Temos, por último, a concepção psicanalítica de cultura, avançada por Freud, citada por Fisher (1992), para quem fazem parte da cultura as tensões intrapsíquicas, com base social, que impedem a livre expressão do ego. Este facto não só afecta a personalidade, como pode, inclusivamente, gerar traumas psíquicos no sujeito. Não é difícil vermos esta concepção em situações de imigração onde um grupo minoritário se vê na necessidade de se aculturar à cultura maioritária. A pesar da existência dessas concepções a definição do conceito de cultura continua marcada por muita controvérsia e dificuldades.  Podemos, só para dar um exemplo, citar o facto de que Kroeber y Cluckhoholm (1952) ao fazerem uma análise do conceito de cultura encontraram nada mais nada menos que 160 definições diferentes. Assim, para não tornarmos exaustiva esta análise vamos referir-nos, sucintamente, a algumas definições de cultura para, no fim, nos fixarmos na que servirá de base para a construção do nosso modelo teórico de análise.

A primeira definição é, obviamente, a apresentada pelo pensamento positivista que imperou ate meados dos anos 50. Define-se, neste pensamento, a cultura, como o conjunto de costumes, normas, mitos e crenças, com carácter universal, que, sob a forma de condicionamento externo, moldam o comportamento das pessoas. Estudos baseados nesta definição enquadram-se no paradigma cooperativista da antropologia sócio-cultural. Um dos méritos é, por exemplo, o facto de terem permitido  identificar, através de estudos comparativos, o que temos de comum e de diferente (Millan,2000).

Outra definição de cultura contrapõe a organização social à cultura e pode ser encontrada em autores como Edward Taylor, (britânico) e Kroeber y Cluckhoholm (norte-americanos). Edward Taylor (1871) define o conceito de cultura como civilização, incluindo elementos como as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e um amplo conjunto de aptidões e hábitos que o homem adquire como membro da sociedade. No entanto, a definição de Taylor, embora muito utilizada nos dias de hoje, foi considerada por Kroeber e Cluckhoholm como incompleta e imprecisa, sobretudo por não especificar a que aptidões e hábitos adquiridos pelo homem Taylor se referia.

A cultura para Kroeber e Cluckhoholm (1952) pensadoras da Antropologia Cultural Norte Americana a cultura consiste numa gama de comportamentos adquiridos e transmitidos através de símbolos, tendo como núcleo as ideias tradicionais (valores e sistemas culturais) produtos da acção humana e por elementos que irão condicionar a acção futura dos homens. Entanto. Esta definição tem sido também objecto de crítica pelo facto de enfatizar apenas os critérios externos do meio como formador da cultura. Ela induz-nos a conceber o homem como um ser passivo que vai recebendo in-puts do meio sem qualquer capacidade para criar a própria cultura. Surge-nos, assim, Ward Goodenough, citado Por Reynoso (1986), com uma definição de cultura muito próxima da psicologia, concebendo-a como  uma representação simbólica que os indivíduos adquirem durante o processo de enculturação. Embora esta definição seja muito criticada, pelo seu carácter psicologista, é ainda utilizada nos Estados Unidos da América.

Temos, por último, a definição de Clifford Geertz (1984) enquadrada na hermenêutica antropológica. Este pensador defende a ideia de que o conceito de cultura é semiótico. Deve, por isso, ser entendido como algo que dá sentido (significados vividos e experienciados por uma determinada comunidade) aos eventos da vida quotidiana. Outro aspecto a destacar nesta definição é o facto de se enfatizar, na cultura, o aspecto significativo que o contexto exterior dá à cultura interior de um indivíduo, numa dialéctica de objectivação e subjectivarão. Nesta linha de ideias as coisas quer feitas por um grupo humanos quer as existentes na natureza possuem um determinado significado (semântica semiótica). Por outras palavras, cada grupo ou pessoa atribui conotações particulares às coisas que podem não coincidir com a de ouros grupos ou indivíduos. Tal significado é, no entanto, dado em função do contexto cultura de um determinado grupo. O contexto diz respeito ao meio ambiente que envolve o homem ou um grupo de pessoas e que, afecta, por um lado, o intelecto do sujeito, sob a forma de conhecimentos e, por outro, lhe dá a sua visão do mundo. Devemos, no entanto, centrar-nos sobremaneira naqueles aspectos do ambiente com significado para a formação e desenvolvimento da cultura de um determinado grupo de indivíduos.

Geertz também se refere aos elementos que dão existência a uma determinada cultura. De entre estes destaca a geografia e o clima (zona seca, fria, etc.) que dão sentido ou significado ao dia-a-dia de um determinado grupo; a história, muito ligada ao passado de cada comunidade e os processos produtivos (extracção de matérias-primas da natureza, sua transformação e o estabelecimento de relações entre as pessoas durante as suas actividades).

Noção de educação

O conceito de educação é de igual modo complexo, ainda que seja, a nosso ver, menos controverso que o de cultura. De um modo geral, a educação tem sido analisada no sentido lato e estrito.  A educação no sentido lato, pode conceber-se como todo o conjunto de influências que o sujeito sofre num determinado contexto tal como, por exemplo, a influência dos meios de comunicação social.

Mialaret (1971) afirma que a palavra educação é, classicamente, empregue em três sentidos principais: em primeiro lugar, como uma realidade sociológica e atinente a um determinado sistema educativo (educação angolana, francesa, americana); em segundo lugar, para designar o ponto de chegada de um processo desenvolvido e, por fim, para designar o próprio processo.

A educação como processo enquadra-se perfeitamente no sentido estrito. Incluem-se nela a instituição educativa, os conteúdos programáticos, os métodos e técnicas que se utiliza no referido processo, assim como as acções de um indivíduo sobre um indivíduo ou grupo.

De qualquer das formas, não se pode excluir, quando se fala de educação, aspectos como os conteúdos (das matérias aprender) o sujeito (aluno que aprende e o professor que ensina) e a sociedade, sem esquecermos, claro está, as interacções que se estabelecem entre os mesmos. Gostaríamos, agora, de referir que nos centraremos no conceito restrito de educação.

 

Proposta de um  modelo teórico de análise

Pretendemos, com o modelo abaixo apresentado, estabelecer a complexa relação entre a cultura e a educação, assim como as relações e inter-relações entre as variáveis intervenientes.

Modelo explicativo da relação entre a cultura  e a educação

 

 

tabela 01

Fonte: a autora

O Exemplo dos Gambos

Trouxemos, para ilustrar esta relação, o resultado das observações  feitas por nós na área dos Gambos, província da Huíla.

Grupos étnico-linguísticos

Os grupos étnico-linguísticos sujeito à observação foram o Nhyaneka-Nkhumbi, a comunidade agro-pastorial que vive na Província da Huíla no Município dos Gambos e os Hereros comunidade pastoril. Fazem parte desses grupos, na região estudada, os Ngambwe, Mwila e os Hakahona.

Geografia e Clima

Este grupo vive numa região que chove acima de 600mm (Carvalho,1997). Trata-se, na verdade, de uma região ecológica caracterizada pela escassez da água, dando-se predominante destaque a que provém das chuvas.

História

A história passada e presente dos grupos acima referidos é, no seu todo, próxima a de outros grupos que povoam Angola. A única diferença  reside, talvez, no facto de esta região ter sido palco de várias disputas e razias derivadas da problemática do gado, água e terrenos que ainda hoje, e com contornos muito complexos, persistem.

Processos produtivos

Os Ngambwe, Mwila e Nakahona distribuem a sua actividade entre a agricultura para o autoconsumo e a pastorícia. Trata-se, portanto, de uma comunidade agropastoril, embora com uma maior tendência para a vida pastoril. De acordo com os dados por nós recolhidos, quando do nosso inquérito, cultiva-se principalmente o milho, massango e a massambala, assim como o feijão frade.

A actividade desses grupos centra-se, sobremaneira, na relação pasto e água o que aliado às condições ecológicas atrás citadas, faz com que eles sejam caracterizados por um grande mobilidade. Daí o processo de transumância (okuiluka) que tem um impacto muito grande na vida e organização social destas comunidades, que se deslocam a grandes distâncias, à procura de pastos para os animais.

Morais (1974) citado por Carvalho (1997) afirma que a transumância é a técnica mais racional sob as condições do meio caracterizado por uma diversidade das formações vegetais dadas as escalas de atitudes e as quedas pluviométricas correspondentes.

Verificamos, no nosso estudo, que a transumância é praticada pelas crianças (em idade escolar) e pelos adultos, incluindo alguns idosos. Às mulheres é permitida a deslocação aos locais onde estes se fixam com o fim de o conhecerem e de proverem de mantimentos os seus entes queridos.

Implicações para o processo de educação

As situações atrás descritas têm tido grande impacto no processo de educação e ensino ali decorrentes (e não só). Recorde-se que, em Angola, o sistema de ensino público é nacional em termos de estrutura, conteúdos e métodos. Os programas de ensino são, a par disso, “de carácter nacional e de cumprimento obrigatório por todas as instituições”, conforme a Lei de Bases para o Sistema de Educativo.

Apesar de legítima a defesa destes princípios a verdade, porém, é que, a sua concretização tem esbarrado em vários obstáculos. Tal não acontece apenas com o sector da educação e ensino. Morais e Correia (1993) afirmam, numa análise sobre esta comunidade agro-pastoril, que “as acções voltadas para o meio rural têm-se pautado por um desajustamento entre os executores e as estruturas de concepção e orientação global, com resultado na completa marginalização e de abaixamento das suas condições de vida”.

Numa entrevista feita a alguns professores ali sedeados, os mesmos referiram-se a dificuldades de vária ordem para levarem a cabo o processo docente – educativo. De entras estas apontavam o incumprimento do calendário escolar e dos programas de ensino. Uma das razões é precisamente o processo de transnumância que levava os pais a tirarem os filhos da escola e obrigá-lo a acompanhá-los para as regiões de pasto; óbvio que isso tem-se repercutido desfavoravelmente no aproveitamento escolar desses alunos. Outra situação caricata, referida por alguns professores, que atesta o sentido que essas comunidades dão à escola, é que durante o tempo permitido para os filhos frequentarem a escola, os pais dirigem-se, regularmente a esta exigindo uma remuneração. Escusado será referir que na nossa cultura citadina, isso seria, na verdade, um contra-senso.

Um outro aspecto importante foi identificado através de uma análise de conteúdo ao discurso das mulheres inquiridas. Solicitadas a informarem sobre a forma como têm “utilizado os rendimentos (dinheiro e produtos) que conseguem com as actividades agro-pecuárias e outras actividades económicas que realizam”, num total de cinquenta mulheres, nenhuma delas se referiu à educação dos filhos. Isto pode, à partida, mostrar a pouca relevância que elas atribuem à escola.

Conclusões

A cultura, como se pode ver, é um aspecto importantíssimo a ter em conta na concepção e execução dos projectos de desenvolvimento humano. Exige-se, para isso, que se tenha em linha de conta o sentido (significado) que as comunidades dão aos aspectos do seu meio envolvente. De acordo com o nosso modelo de análise, é necessário repensar na “escola” para as comunidades agro – pastoris, como é o caso dos Ngambwe, Mwila e Nakahona ou mesmo de outras (caso dos Kuvale, dos San ou kamussequeles, e outras.). Evitar-se-ia, assim, que estas comunidades sejam marginalizadas por um ensino de pendor marcadamente monocultural. Só nesta base se poderá, pensamos nós, formar neles valores, atitudes e competências que lhes permitem aprender a ser, fazer e a viver em conjunto com outras comunidades.

Daí que propomos o seguinte:

  • Discutir a possibilidade de se organizar o processo de ensino destas comunidades de um modo diferenciado (organização curricular, métodos de trabalho, papel do professor e do aluno, organização do tempo[1] e espaço, formas de gestão), através da participação da própria comunidade;
  • Discutir a possibilidade de se formar, nos Instituto Médios Normais e Superior de Ciências da Educação e no Magistério Primário professores capazes de actuarem dentro das comunidades agro-pastoris, pastoris ou mesmo caçadores – recolectoras. Tais formandos deveriam, de preferência, ser originários das referidas comunidades. Isto permitiria conceber um projecto educativo capaz de imprimir as marcas da tradição dessas comunidades nos métodos pedagógicos e não só;
  • Fomentar o surgimento de linhas de pesquisa sobre os processos de desenvolvimento das comunidades agro-pastoris, pastoris e outras. Não se exclui, nesta proposta, os estudos comparativos feitos em   países onde também existem essas comunidades .Definir-se-ia, assim, e sempre num perfeito equilíbrio entre a tradição e a modernidade, um quadro mais global sobre o desenvolvimento económico, social e educativo desses grupos.

 

BIBLIOGRAFIA

Projecto de Lei de bases do Sistema de Educação. Ministério da Educação Luanda. Angola,1998.

ABDELMALEK, Ali (1999). Ciências humanas e cuidados de saúde. Lisboa. Instituto Piaget.

FISCHER, G. N. (1992) campos de intervencion en psicologia social.Madrid. Nancea.

MILLÁN, T. R.(2000). Para comprender el concepto de cultura. Unap Educación y desarrollo, Ano1, Marzo.p.p-18-24.

 

[1]Chama-se a atenção ao facto de que a noção de tempo e de espaço para estas comunidades, conforme as nossas constatações, obedece a uma lógica rural que não coincide, necessariamente, com a nossa lógica urbana.

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