Jonas Savimbi: Saber Morrer pela Imortalidade

Jonas Savimbi

O dia 22 de Fevereiro foi, para todos os efeitos, imprevisto e tétrico; imprevisto, porque, tal como nos outros dias, Jonas Malheiro Savimbi se preparava, como de costume e na qualidade de General, para mais um dia de rotina. Meteu, logo pela manhã, o seu uniforme verde, fez a toilette e, como é provável, aguardava pelo evoluir da situação. No entanto, a perda, dias atrás, das duas colunas que o guarneciam não augurava nada de bom, pois estava praticamente exposto às forças do MPLA (milícias, polícias e soldados das FAA) com a participação de mercenários israelitas, portugueses e sul-africanos; estes últimos que há muito pouco tempo o haviam apoiado. E, tal como Che Guevera, na Bolívia, Jonas Savimbi nem sequer se deu conta que o inimigo estava a poucos passos de si e lhe crivava, segundos depois, o corpo com sete balas.

Foi assim, de uma forma aparentemente fácil, e quase inacreditável - para um homem demasiado experiente nas andanças da guerra -, que terminava a vida de um líder carismático, e de um homem que fez da guerra o seu cavalo de batalha para um dia vir a ser Presidente do País que o vira nascer.

As pessoas que o conheceram de perto contam que, em certas ocasiões, lhes perguntava se um dia viria a ser, de facto, Presidente de Angola e, condoído pela dúvida, vertia algumas lágrimas, talvez por notar que esse desiderato se encontrava distante de si anos-luz.

A falar a verdade, Jonas Savimbi nem sequer precisava de vir um dia a ser  Presidente da República, pois viveu as glórias, as alegrias, as honras e as agruras de todos os presidentes. Teve uma vida tão atribulada, quanto plena de contradições, esse menino irrequieto, que nasceu a 3 de Agosto de 1934, em Munhango, no Bié.  

A sua passagem por Portugal foi, de igual modo, tempestuosa, uma vez que a par dos estudos, contestava abertamente o regime colonial português, o que lhe valeu alguns dissabores, e não foram poucos. Apesar disso, conforme Daniel Chipenda, não se coibia em ostentar os seus conhecimentos, mesmo em domínios não afins à sua formação. Uma vez, pretendeu dar uma conferência sobre Antropologia numa instituição portuguesa, sendo, de imediato, desaconselhado por Chipenda.

Formado em Ciências Políticas e Jurídicas na Universidade de Lousane, Suíça, passou, a partir daí, a dedicar toda a sua vida à política até ao último momento em que morreu em combate.

Jonas Savimbi era o homem dos antípodas: era anjo e ao mesmo tempo demónio; assemelhava-se ao remoinho de vento, kanyongo, que varre árvores e levanta as casas do chão, mas também tinha dificuldades de se conter e, por vezes, chorava como uma criança. A sua vida tão plena de contradições, e de estados de humor surpreendentes, levou a que, no processo eleitoral de 1992, o MPLA afirmasse que ele havia feito campanha para si, apesar de (o que é paradoxal) o seu arqui-rival não o ter batido logo na primeira volta. Mas a sua sentença de morte havia sido decretada há muito, ou seja, muito antes da independência. Apenas José Eduardo dos Santos viria a consumá-la, volvidos dezenas de anos, nesse fatídico dia, na localidade de Lucussi, ao lado de uma grande mulemba.

Quer queiramos quer não, temos de aceitar que, com a morte de Jonas Savimbi, abre-se uma nova fase na vida política de Angola, ainda que contrária aos cenários que se vêm desenhando por aí. Primeiro, porque, para o MPLA, as causas da guerra não radicam em factores de ordem estrutural, mas na ambição de um homem que queria, a todo o custo, tomar o poder. Não tardará a chegar o dia em que o MPLA e os seus correligionários se aperceberão  que esta morte não trouxe nada de novo para o processo de consolidação da paz; muito pelo contrário, notarão, perplexos, que afinal a paz não nasce da eliminação de adversários, mas sim da transformação espiritual, moral e ética  no seio do próprio MPLA. Só assim, e tal como a sombra de uma mulemba, a verdadeira paz se espalhará pela Nação inteira.

Está à vista que a verdadeira paz passa, necessariamente, pela instauração de um verdadeiro estado de direito; pelo desfasamento das assimetrias regionais (dando a cada região uma relativa liberdade para decidir do seu destino, económico e social). E mais importante ainda, pela distribuição equitativa das riquezas do país, de modo a que cada angolano, esteja onde estiver, seja quem for, sinta o merecido orgulho pela sua terra-mãe.

O filho de Lote e Mbundu, teve todos os meios ao seu alcance para evitar tal trágico desfecho; possuidor de uma grande fortuna, poderia, sem grandes dificuldades, exilar-se em qualquer país; possuía, até ao último momento, o intacto o seu sistema de comunicações com o qual poderia comunicar com o mundo, ou com as Nações Unidas, a sua rendição. Mas preferiu, conscientemente, morrer assim, na crença, pensamos nós, de que, ao estilo de Cristo, continuaria vivo durante vários séculos no imaginário daqueles que o seguiram e o apoiaram (e não só). Refiro-me ao poder catalisador das energias que possuem certos líderes que deixam de existir de uma forma brutal. Trata-se do valor e do poder simbólico de um mártir.

Independentemente da evolução do processo político-militar de Angola, a verdade é, que, o MPLA perdeu o seu bode expiatório. O indivíduo a quem era atribuída a miséria, a falta da gestão transparente da coisa pública, a corrupção, o despotismo, o tráfico de influências, a prioridade do estrangeiro em detrimento do nacional, a ausência da democracia e até, o mais anedótico, a falta da luz e da água na cidade de Luanda.

Fatalmente, acaba de chegar o momento em que o MPLA terá, necessariamente, de olhar para si próprio. E assim, a morte de Jonas Savimbi, muito longe de colocar o MPLA numa posição confortável, colocá-lo-á, isso sim, numa posição mais crítica, pois a partir de agora, o maior inimigo do MPLA já não será Jonas Malheiro Savimbi, mas sim a verdadeira democracia. De resto, é tudo uma questão de tempo ou, quem sabe, de dias.

Talvez isso explique porque Jonas Savimbi havia escolhido morrer assim. E quando nos vêem à mente as imagens enfadonhas de Abimael Reynoso Guzman, líder do Sendero Luminoso, a que Alberto Fujimori converteu num verdadeiro espantalho, talvez, quem sabe, tenha valido a pena Jonas Savimbi acabar como acabou.

Ninguém ignora a abjecta humilhação porque passou depois de morto; a humilhação mais vil e contrária à cultura africana, mas isso é de somenos importância, porque só humilham cadáveres aqueles que não sabem que o valor de um homem está nas suas ideias.

 

New Castle, 23 de Fevereiro de 2002.

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